O grupo de pesquisa CNPq UFSM Ged/A, responsável por desenvolver pesquisas em Gestão Arquivística de Documentos Digitais e Preservação Digital vem a público manifestar-se contra o Projeto de Lei do Senado nº 146/2007 (PLS n°146/2007), que dispõe sobre a digitalização e arquivamento de documentos emmídia ótica ou eletrônica, e dá outras providências, o qual foi desarquivado e voltoua tramitar em 2015, sendo encaminhado à Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJC) em 22/11/2016. O referido projeto, em suma, propõe aequivalência de documentos digitalizados aos respectivos originais, possibilitando inclusive, que documentos originais que não sejam destinados à guarda permanente, sejam eliminados após o processo de digital.
O que imediatamente destaca-se neste projeto, é não levar em conta umadas principais características de um documento arquivístico: ser autêntico, eportanto, ter respaldo para comprovar fatos e ações, garantir confiança dastransações e decisões efetivadas pela administração pública, além de comprovarque as informações registradas não foram adulteradas. Ao se propor que se digitalize um documento, e em seguida, que o respectivo original seja eliminado,incorre em destruir a garantia de autenticidade das informações registradas,extinguindo por completo a possibilidade de verificar a autenticidade do documentodigitalizado, caso se levante a hipótese de alterações indevidas. O documentodigitalizado não é capaz de garantir a autenticidade do respectivo original, pois os requisitos de validade e autenticidade encontram-se apenas no documento original.Portanto, destruir o original significa destruir a autenticidade do documento.
A proposição do PLS nº 146/2007 de certa forma implica em uma tentativa de destruir os sólidos referenciais e princípios da Arquivística e da Diplomática,colocando em risco os elementos de fixidez que garantem a presunção de autenticidade dos documentos. Eliminando-se os originais,extingue-se a possibilidade de aplicar a análise forense ou diplomática forense, que só pode ser realizada através da verificação dos elementos intrínsecos e extrínsecos do
documento genuíno.
Cria-se,portanto, caso se aprove o referido projeto de lei da forma como está sendo apresentado, um cenário em que teremos documentos digitalizados, mas que se apontados como falsos ou alterados indevidamente, não poderão ser analisados frente ao seu original para a devida comprovação da autenticidade. Parte da documentação pública brasileira, será então, incapaz de cumprir sua função de provar e garantir a veracidade das informações que registram.
Outro fator que merece menção é o recorrente equívoco de citar o uso da assinatura digital/certificado digital como elemento garantidor da autenticidade do documento. Faz-se necessário esclarecer que a autenticidade é presumida mediante a aplicação de um conjunto de procedimentos administrativos e tecnológicos, enquanto que a certificação digital é apenas um dos elementos que corroboram na presunção de autenticidade dos documentos.No caso da digitalização de documentos originais, por exemplo, o uso do certificado digital apenas realiza uma autenticação do objeto digital resultante, o que não garante sua autenticidade (tanto que é possível autenticar documentos falsos). Note-se que autenticação e autenticidade são conceitos completamente distintos, sendo esta questão explícita na Resolução n° 37, de 19 de dezembro de 2012, do Conselho Nacional de Arquivos (Conarq), que Aprova as Diretrizes para Presunção de Autenticidade de Documentos Arquivísticos Digitais. Portanto, a administração pública precisa compreender esses conceitos para que não proponha projetos,como o PLS n° 146/2007, que desconsiderem essa fundamental diferenciação.
A simples hipótese de se eliminar documentos arquivísticos originais que foram concebidos em suportes analógicos, por terem sido produzidas representações digitais com autenticação, é uma afronta à Ciência Arquivística, à Ciência Diplomática, aos arquivistas, enfim, é desrespeitar os princípios de autenticidade, a legislação do Conarq, em especial a Resolução nº37/Conarq/2012 que diferencia autenticidade de autenticação, a Lei nº 8.159 de 1991, que dispõe sobre a política nacional de arquivos públicos e privados (Lei de Arquivos), e até mesmo o novo Código de Processo Civil (Lei nº 13.105/2015) que entrou em vigorneste ano (2016) .
Analisando-se com mais profundidade ao que dispõe o novo Código de Processo Civil, este admite quaisquer documentos a serem usados como prova no processo civil (desde que obtidos licitamente), mas respeita e exige o documento original para a manutenção da prova e autenticidade, e caso a veracidade do documento seja contestada, cabe a um dos envolvidos arguir a falsidade, o que pode levar ao exame pericial-análise forense- diplomática forense (vide artigos 430 a 433 da Lei nº 13.105/2015); caso seja usada a imagem de um documento físico (analógico) digitalizado, ele pode ter força probante no processo, desde que a falsidade não seja arguida e provada, sendo nesse caso, imprescindível a apresentação do original.
Portanto, o PLS nº 146/2007 vai contra até o que dispõe o recente Código de Processo Civil, em que caso seja arguida a falsidade de um documento usado como prova, não teria como ser apresentado o documento original, pois este fora eliminado após a digitalização. Neste caso, o cidadão ficaria refém tanto do Estado,como de qualquer pessoa ou quem lhe acusar com uma imagem de documento digitalizado, que mesmo falso, não poderá passar por uma análise forense, uma perícia no documento original.
Além do prejuízo que este projeto incorrerá para a sociedade brasileira ao extinguir a função de “prova” de grande parte dos documentos públicos, ao analisarmos as justificativas do projeto, que em linhas gerais são “ redução de custos, aumento da transparência, aumento da acessibilidade à informação,sustentabilidade ambiental, facilidade de manuseio e recuperação e redução de espaços físicos para Arquivos” , percebe-se que há uma visão imediatista, que pela ânsia de “eliminar o suporte papel”, desconsidera preceitos da gestão documental,da preservação de longo prazo, além é claro, da presunção de autenticidade dos documentos.
Cumpre destacar, que na justificativa do PLS n° 146/2007, citase
alguns cenários que demonstram a economia que ocorreria se determinados documentos fossem eliminados, mas em contrapartida, não menciona, por exemplo, qual é a previsão de custos com a manutenção do ambiente tecnológico ao longo dos anospara manter a crescente produção de documentos digitais; não cita quantasinstituições dispõem de Sistemas Informatizados de Gestão Arquivística deDocumentos (SIGADs) para a produção e gestão de documentos digitais; não menciona a necessidade de Repositórios Arquivísticos Digitais Confiáveis (RDCArqs) para armazenar os documentos digitais de longa temporalidade e/ou permanentes, e tampouco menciona se as instituições apresentam planos de preservação para os documentos digitais. Estes são alguns exemplos de elementos básicos e indispensáveis quando se trata da produção, gestão, preservação e acesso de documentos digitais. Ao serem desconsiderados cria-se uma visão distorcida de que a produção e gestão de documentos digitais é uma tarefa “simples”, ou ainda, que não requer uma série de procedimentos, investimentos e responsabilidades até então aplicados no suporte analógico.
A digitalização, de fato é um recurso primordial para o acesso aos documentos, mas não é alternativa viável para substituir documentos originais produzidos em meio analógico. Sendo assim, as instituições em meio a iniciativas voltadas à modernização de procedimentos relacionados à sua documentação, precisam deter-se na produção e manutenção de documentos natodigitais como forma de diminuir o uso do suporte analógico. Este é o caminho para que o suporte analógico, em especial o papel, seja substituído pelo meio digital. Inclusive, o cenário brasileiro conta com diversos instrumentos normativos e de orientação para o desenvolvimento da gestão arquivística de documentos digitais, destacando-se as Resoluções do Conselho Nacional de Arquivos (Conarq) que estão em conformidade com diretrizes e normas internacionais voltadas à produção, gestão e preservação de documentos digitais.
Além disso, as instituições não estão atentando para o fato de que com a existência de documentos digitais,sejam eles natodigitais ou cópias digitalizadas (representantes digitais), consequentemente se torna necessário investimentos constantes no ambiente tecnológico de produção, uso e preservação desses objetos digitais. Ou seja, mesmo que a produção e uso de documentos analógicos diminuam, continuará existindo a necessidade de investimentos para a produção, uso e preservação dos documentos em meio digital, ou até mesmo será necessário um acréscimo nos investimentos, uma vez que o contexto tecnológico é mais instável do que o analógico, e requer atualizações constantes.
É fato que a tecnologia trouxe benefícios imensuráveis à sociedade, inclusive para a documentação pública, no entanto, sua aplicação em hipótese alguma pode sobrepor-se aos princípios consolidados pela Arquivologia e pela Diplomática, pois eles são garantidores da existência de documentos como fonte de informaçõesautênticas, acessíveis e confiáveis, tanto no meio analógico, quanto no meio digital.
Inclusive, o Arquivo Nacional emitiu Parecer, em outubro de 2016,posicionando-se contra a proposta do PLS n° 146/2007. Entre os fatores citados para tal posicionamento estão: proposta que tenta permitir a eliminação expressa de documentos arquivísticos sem um processo cuidadoso de avaliação que esteja incorporado aos procedimentos de gestão documental; desconsideração ao que prevê o Novo Código de Processo Civil, que admite o uso de reproduções digitalizadas de documentos, mas mantém a necessidade de preservar o original,pois pode ser requerido em caso de impugnação do representante digital; que a proposta atual visa a digitalização e eliminação de documentos correntes, justamente àqueles que mais necessitam ter a manutenção de sua integridade assegurada; e, que as ações de gestão documental empreendidas pelo Arquivo Nacional (em destaque a avaliação e destinação dos documentos) realizadas nos últimos anos, proporcionaram economia de recursos aos órgãos públicos, sem colocar em risco a integridade e a autenticidade dos documentos.
Portanto, nesse possível contexto de insegurança jurídica não podemos deixar de alertar que o PLS nº 146/2007 é apenas uma das inúmeras iniciativas envolvendo os documentos arquivísticos, em especial os digitais, o que denota que precisamos atuar mais, seja na divulgação das pesquisas, na formação, na educação continuada, nas discussões interdisciplinares dos arquivistas com formação em Direito para elaborar relatórios, análises técnicas. Precisamos urgentemente de manifestações firmes de todos os segmentos da Arquivologia, do Direito, dos nossos colegas pesquisadores, para que os fundamentos epistêmicos da Arquivologia e os sólidos referenciais de Autenticidade Diplomática Arquivística
não sejam destruídos.
Grupo de Pesquisa CNPq UFSM Ged/A, 29 de novembro de 2016.
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