Territórios
negros e as memórias dos bairros de
Porto Alegre: um primeiro olhar sobre as
fontes do
Arquivo Histórico Moysés Vellinho
THIAGO FRAZZON AREND
O Arquivo Histórico de Porto Alegre (AHPAMV) é um excelente lugar para
aqueles que desejam investigar sobre a história dos bairros da cidade. Seja
através da biblioteca, seja por meio dos documentos guardados na reserva
técnica, o arquivo mantém uma coleção significativa de sínteses sobre a
formação e história desses bairros, além de mapas, plantas e reportagens
representando suas regiões e versando sobre acontecimentos diversos que ali
tenham tomado lugar. Não é à toa que uma considerável parte dos visitantes que
o Arquivo recebe venham justamente à procura deste tipo de pesquisa de caráter
mais local: pesquisa-se um bairro, uma rua, um lugar específico da cidade ou de
sua região metropolitana.
Os mapas e plantas são fontes importantes para se aproximar da história
local da cidade. Com o conjunto de mapas disposto na mapoteca do AHPAMV podemos
entrar em contato com a geografia da cidade, os nomes das ruas e dos bairros e
a organização espacial deles. Outra vantagem em se utilizar essas fontes é a
possibilidade de se analisar tudo isso em vários momentos históricos distintos,
percebendo-se a evolução da dinâmica urbana na cidade ao longo do tempo. O
aspecto que torna interessante o estudo dos mapas dentro da história é a
possibilidade de compreender como a geografia condiciona e molda as relações
sociais e como estas modificam o espaço. Muitos aspectos sociais e espaciais mudaram
na cidade desde o começo do seu povoamento, em fins do século XVIII, basta que
os profissionais ligados à história saibam fazer as perguntas certas para que
possam, então, descobrir um universo de possibilidades de pesquisa.
Planta de
Porto Alegre de 1896. Fonte: Projeto Cartografia Histórica de POA - IHGRS
Dentre as diversas pessoas que utilizaram, entre as fontes de sua
pesquisa, os mapas e as plantas de Porto Alegre guardados no AHPAMV, podemos
destacar Daniela Machado Vieira, mestre e doutorando do Programa de
Pós-Graduação em Geografia, ligado à Universidade Federal do Rio Grande do Sul
(POSGEA - UFRGS). O trabalho intitulado “Territórios Negros em Porto Alegre/RS
(1800-1970): geografia histórica da presença negra no espaço urbano”, defendido
em 2017, rendeu diversos prêmios à Daniela, entre eles o XI Prêmio Brasileiro
“Política e Planejamento urbano de dissertação de mestrado, além da “Menção
Honrosa de Dissertação do Prêmio Maurício de Almeida Abreu”.
Daniela reconhece como território negro o “espaço físico e simbólico
configurado a partir da função (de habitação, trabalho, lazer etc.) e/ou de
práticas culturais (como o batuque, o carnaval, a religiosidade etc.) exercidas
por mulheres e homens negros, cuja significação é construída a partir da
presença negra e/ou das atividades desenvolvidas por estes” (VIEIRA, D. M.,
2017). O trabalho da autora é fundamental no sentido de trazer à tona uma
cartografia desses territórios, mostrando a presença, desde pelo menos o início
do século XIX, de famílias negras em muitos espaços da cidade, principalmente
naqueles onde hoje se pretende apagar e mascarar essa ocupação e participação cotidiana
anterior.
O trabalho também leva em consideração que os mapas não podem ser vistos
e tomados como fontes “mortas” e “frias”, à espera de uma leitura simples e
direta. Pelo contrário, os mapas são construções políticas e, segundo a autora,
houve tentativas pontuais em se apagar ou obstruir a imagem da população negra
em Porto Alegre, começando pela própria falta de representação direta na
representação cartográfica: até a conclusão da dissertação, não havia mapas
mostrando exatamente a localização desses territórios, os quais foram mapeados
por Daniela em sua pesquisa.
Região de
Porto Alegre conhecida como “Ilhota”. Fonte:
São alguns dos territórios que foram mapeados pela autora: a região dos
Mercados (Largo da Quitanda e Praça Paraíso), a Irmandade do Rosário, a Rua do
Arvoredo, o Beco do Poço, uma parte da Várzea, o Areal da Baronesa, a Ilhota, a
Colônia Africana e o Mont’Serrat. A maioria desses espaços teve seu nome modificado
ao longo do tempo, talvez com o intuito de deixar de lado a história atrelada à
antiga nomenclatura, de modo que, se o pesquisador não tem um olho já treinado,
fica difícil encontrar o espaço no mapa com rapidez. Além disso, a maioria
desses locais e bairros teve episódios de remoção compulsória de seus
moradores, os quais foram sendo realocados cada vez mais para as zonas
periféricas da cidade. Esse processo, no qual as populações de menor renda são
afastadas das áreas centrais das cidades e movidas para as partes periféricas,
o qual não deixou de existir com o passar dos anos, é aquilo que os geógrafos
caracterizam como gentrificação.
De fato, estudar os mapas e plantas de Porto Alegre é também perceber, ao
longo do tempo, estas migrações a que muitas famílias se veem obrigadas a
realizar, algumas vezes inclusive por meio de força. Olhar os mapas, com o
auxílio de senso crítico, permite visualizar essas pessoas em seus contextos
geográficos, sociais e econômicos originais, entendendo os argumentos políticos
que foram utilizados para dar conta desses translados, os quais quase sempre
envolvem o imperativo do capital.
Referências
VIEIRA, Daniela
Machado. Territórios Negros em Porto Alegre/RS (1800-1970): Geografia-histórica
da presença negra no espaço urbano. 2017. 189 f. Dissertação (Mestrado em
Geografia) – Instituto de Geociências, Universidade Federal do Rio Grande do
Sul, Porto Alegre, 2017.
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