Visitas Ilustres ao Arquivo
Histórico de Porto Alegre Moysés Vellinho:
os moradores do Areal da Baronesa
Escrito por Thiago Frazzon Arend,
Estagiário em História no
AHPAMV
No segundo semestre de 2019, os profissionais do Arquivo, entre eles estagiários das áreas de História e Biblioteconomia e profissionais arquivistas tiveram o prazer em receber alguns dos moradores do Areal da Baronesa, quilombo urbano da cidade de Porto Alegre, localizado próximo ao bairro Praia de Belas.
Foi um dia inesquecível. Depois de realizarmos, todos em conjunto, uma visita por todo o espaço do Arquivo, comentando detalhes de sua história, a arquitetura de seus prédios e a importância de seu acervo, pudemos conversar com as moradoras, todas alegres senhoras que não se importaram, ficando pelo contrário muito contentes em poder compartir de suas memórias do tempo em que frequentavam bailes, clubes e residiam, como ainda o fazem, no Areal da Baronesa.
Durante o momento de interação em forma de roda de conversa, o mais importante de toda a visitação, os estagiários do Arquivo coletaram diversos elementos guardados tanto na biblioteca, quanto no acervo da instituição, todos eles documentos que dialogavam em parte com a história do Areal e da população negra de Porto Alegre. À medida que uma das senhoras folheava um dos livros, “Porto Alegre em preto e branco”, percebia-se que ela ia rememorando os anos de sua juventude, o que se tornou perceptível quando uma outra convidada fazia perguntas a ela, sobre os bailes em que participava, as pessoas que conhecia, e ela prontamente respondia com a alegria daqueles doces anos. Além disso, pudemos trazer revistas, mapas e imagens, o que tornou mais rica a experiência das moradoras em relação àquele local que por tanto tempo fez parte de suas vidas.
Devemos
retornar, agora, um pouco atrás na história do Areal da Baronesa, que nos chega
graças a pesquisas diversas entre as quais destacamos a dissertação de mestrado
de Daniela Machado Vieira (2017). A autora menciona que o Areal da
Baronesa era uma “nesga de terra arenosa” (VIEIRA, 2017, p.102, apud SANHUDO, 1961, p.186) delimitada
pelo Guaíba, a oeste, e pelo trecho final do Arroio, a leste. Os limites desse
espaço eram a Av. Praia de Belas, a oeste, a Rua Vinte e Oito de Setembro, ao
sul, e a Ponte de Pedra, ao norte. Hoje a área do Areal faz parte dos bairros
Cidade Baixa e Menino Deus (VIEIRA, 2017, p.102). A área que circunscreve o
Areal pode ser vislumbrada, nos anos de sua formação, na Planta de Porto Alegre
de 1896, localizada no acervo do Arquivo Histórico Moysés Vellinho.
Depois de loteada a chácara, o local passou a incorporar o nome de Arraial da Baronesa, sendo popularmente conhecido como Areal da Baronesa, devido à “grande quantidade de areia existente na região” (2017:104). Vieira ainda confirma que aquele espaço já era efetivamente ocupado pela população negra desde antes do loteamento, ou das compras de liberdade pelos escravizados. Para sustentar essa hipótese, Vieira cita trechos de processos criminais evidenciando pessoas negras em períodos anteriores ao momento da doação das terras (VIEIRA, 2017, apud MATTOS, 2000).
Por constituir
um espaço de forte importância para a população negra da cidade, como local de
memórias, afetos e sociabilidades, os moradores do Areal da Baronesa se
organizaram para solicitar o reconhecimento da região enquanto Quilombo. Em 3
de junho de 2004, o Areal recebe a Certidão de Auto-reconhecimento como Quilombo
Urbano, da Fundação Cultural Palmares do Ministério da Cultura (COSTA, A. M.
F., 2008, p.49). A grande circulação de pessoas pela Rua Luís Guaranha, no
Quilombo do Areal da Baronesa contradiz a noção de “esfriamento” e esvaziamento
da vida pública que é muito associada às avenidas. Essas largas ruas conhecidas
como avenidas são associados à passagem e ao fluxo desenfreados característicos
dos grandes centros urbanos, tais como a cidade de Porto Alegre. A Luís
Guaranha escapa desse padrão. Apesar de nomeada avenida, é um espaço de
permanências, encontros, vivências e experiências compartilhadas. É na rua que
ocorrem as sociabilidades, trocas de informação, brigas e até fofocas entre os
vizinhos, conhecidos e amigos do entorno (MARQUES, O. R., 2006).
Através de antigos documentos, mas
principalmente por meio da oralidade que ainda persiste e resiste vivaz e
continuada entre os moradores da Luís Guaranha é possível perceber as
transformações e mudanças que aconteceram na rua e na comunidade do Areal, que
mais tarde obteve a emancipação enquanto quilombo urbano da cidade de Porto
Alegre. Através dos relatos colhidos por Olavo R. Marques (2006) percebe-se que
a área ao lado da rua já foi um matagal. As primeiras moradias que foram
assentadas, todas construídas em madeira, eram essencialmente iguais e com os
mesmos tipos de ornamentos também confeccionados em madeira na forma de
ziguezague. Juntas elas compunham o final da avenida que, em seus primórdios,
formava um “L”. Além disso, o tema da desapropriação de algumas casas
consideradas “antigas” e símbolo da história daquele local, destruídas em favor
do surgimento de construções “modernas” é frequente entre os relatos dos
moradores. Estes se sentem ligados afetivamente ao seu espaço de moradia e
convivência, percebendo as modificações e processos de desapropriação,
destruição, assim como mudanças de alguns moradores, os quais procuram, por
diversas razões, outros locais para viver.
O Arquivo
Moysés Vellinho mantém uma relação especial com o Areal da Baronesa e seus moradores.
No ano de 2019, realizamos uma visita ao Quilombo, por convite de algumas de
suas moradoras mais queridas. Antes disso, no mesmo ano, estas mesmas moradoras
das quais partiu o convite visitaram o Arquivo. Nos dois momentos de
socialização foi interessante perceber a importância da oralidade para os
habitantes do Areal. Ao mesmo tempo em que a voz e a roda de conversa eram os
instrumentos naturais através dos quais se podia “contar histórias” e
“relembrar o passado”, consistia igualmente em eficaz maneira de difundir a
cultura religiosa do candomblé.
Visita
ao Quilombo do Areal. Fonte: AHPAMV
A ligação
emocional com o espaço do Areal é perceptível na fala de um de seus moradores,
nas palavras do autor, um homem negro com cerca de 50 anos:
“Eu teria que dar a benção, e eu estou
pedindo a benção. E não é por esses oitenta anos não. Porque eu vim para cá com
a idade de qualquer uma dessas crianças que aqui estão. Eu vim pra cá com um
ano e seis meses. Claro que eu não vivi toda a minha vida dentro de um ponto
só, houve divagações nessa minha saída. Mas eu sempre permaneci aqui. Portanto
eu sou daqui. Porto Alegre exige isso de nós, e nós temos que dar a Porto
Alegre o que realmente somos… Eu não nasci aqui, mas eu me criei aqui, meu
Deus! Aqui eu me criei, aqui eu abri os olhos, aqui tem milhares de pessoas que
eu conheci e já não existem mais. Aqui eu sei de tudo isso que eu vivi”
(2006:103).
Compreende-se,
portanto, que os moradores do Areal da Baronesa mantêm um forte senso de
pertencimento em relação ao local onde viveram e ainda vivem. Espaço este no
qual trocaram experiências e solidificaram laços sociais. O autor define a
relação entre a avenida e seus moradores sobre a lente de um processo de
“territorialização das identidades desses habitantes urbanos, através de sua
inserção em meio a redes e espaços sociais simbolicamente demarcados nas
atitudes éticas e estéticas dessa população, oriunda de uma experiência
coletiva” (2006:103).
Com fins de
conclusão deste ensaio podemos dizer que a visita dos moradores do Areal da
Baronesa não apenas foi importante para o arquivo e seus profissionais enquanto
experiência diversa daquilo que a maioria estava acostumada, como também serviu
como reforço aos valores que já eram bastante estimados pelos membros da
instituição, os quais são o respeito à oralidade, aos saberes ancestrais, e a
noção de que nenhum conhecimento é menor do que o outro. Tudo isso deve ser
levado em conta quando se entra no território do outro, ao qual não se está
acostumado, e do mesmo modo, quando se convida ao outro para se adentrar no seu
espaço de costume. A experiência e seus resultados só podem servir a enriquecer
as percepções e afetos dos dois lados que se abriram para a novidade.
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