13 de out. de 2020

 

Visitas Ilustres ao Arquivo Histórico de Porto Alegre Moysés Vellinho: 
os moradores do Areal da Baronesa

                                                                                    Escrito por Thiago Frazzon Arend, 

Estagiário em História no AHPAMV


Uma das funções de qualquer arquivo público é espalhar a cultura, fazer com que esta chegue ao maior número de pessoas possível. Essa é a principal razão pela qual o Arquivo Histórico está para que as pessoas de todos os lugares possam conhecê-lo e dele obter fontes adequadas para suas pesquisas. Também é por esse motivo que os funcionários do Arquivo realizam visitas guiadas, as quais possibilitam que mais pessoas conheçam as instalações e o acervo da instituição.
        No segundo semestre de 2019, os profissionais do Arquivo, entre eles estagiários das áreas de História e Biblioteconomia e profissionais arquivistas tiveram o prazer em receber alguns dos moradores do Areal da Baronesa, quilombo urbano da cidade de Porto Alegre, localizado próximo ao bairro Praia de Belas.
        Foi um dia inesquecível. Depois de realizarmos, todos em conjunto, uma visita por todo o espaço do Arquivo, comentando detalhes de sua história, a arquitetura de seus prédios e a importância de seu acervo, pudemos conversar com as moradoras, todas alegres senhoras que não se importaram, ficando pelo contrário muito contentes em poder compartir de suas memórias do tempo em que frequentavam bailes, clubes e residiam, como ainda o fazem, no Areal da Baronesa.
        Durante o momento de interação em forma de roda de conversa, o mais importante de toda a visitação, os estagiários do Arquivo coletaram diversos elementos guardados tanto na biblioteca, quanto no acervo da instituição, todos eles documentos que dialogavam em parte com a história do Areal e da população negra de Porto Alegre. À medida que uma das senhoras folheava um dos livros, “Porto Alegre em preto e branco”, percebia-se que ela ia rememorando os anos de sua juventude, o que se tornou perceptível quando uma outra convidada fazia perguntas a ela, sobre os bailes em que participava, as pessoas que conhecia, e ela prontamente respondia com a alegria daqueles doces anos. Além disso, pudemos trazer revistas, mapas e imagens, o que tornou mais rica a experiência das moradoras em relação àquele local que por tanto tempo fez parte de suas vidas.

Roda de conversa organizada com as visitantes do Quilombo do Areal. Fonte: AHPAMV

            

Devemos retornar, agora, um pouco atrás na história do Areal da Baronesa, que nos chega graças a pesquisas diversas entre as quais destacamos a dissertação de mestrado de Daniela Machado Vieira (2017). A autora menciona que o Areal da Baronesa era uma “nesga de terra arenosa” (VIEIRA, 2017, p.102, apud SANHUDO, 1961, p.186) delimitada pelo Guaíba, a oeste, e pelo trecho final do Arroio, a leste. Os limites desse espaço eram a Av. Praia de Belas, a oeste, a Rua Vinte e Oito de Setembro, ao sul, e a Ponte de Pedra, ao norte. Hoje a área do Areal faz parte dos bairros Cidade Baixa e Menino Deus (VIEIRA, 2017, p.102). A área que circunscreve o Areal pode ser vislumbrada, nos anos de sua formação, na Planta de Porto Alegre de 1896, localizada no acervo do Arquivo Histórico Moysés Vellinho.

Vieira (2017) aponta também as origens do Areal, as quais estariam vinculadas ao “loteamento da chácara de Maria Emília da Silva Pereira, a Baronesa do Gravataí” (p.103). Segundo o senso comum, a baronesa teria doado aquele pedaço de terra à Câmara, a qual aceitou o pedido em Ata da Câmara Municipal de 12 de fevereiro de 1879 (O livro pode ser consultado no acervo do AHPAMV). Por muito tempo ficou estabelecido que, depois de realizada a doação de parte de suas terras, a Baronesa teria libertado espontaneamente seus escravizados. Segundo Vieira (2017:103), foi somente a partir da pesquisa de Jane Rocha de Mattos (2000) que se evidenciou que “os escravos da Baronesa compraram as suas alforrias, contrariando a libertação espontânea por parte da Baronesa”.

        Depois de loteada a chácara, o local passou a incorporar o nome de Arraial da Baronesa, sendo popularmente conhecido como Areal da Baronesa, devido à “grande quantidade de areia existente na região” (2017:104). Vieira ainda confirma que aquele espaço já era efetivamente ocupado pela população negra desde antes do loteamento, ou das compras de liberdade pelos escravizados. Para sustentar essa hipótese, Vieira cita trechos de processos criminais evidenciando pessoas negras em períodos anteriores ao momento da doação das terras (VIEIRA, 2017, apud MATTOS, 2000).

Por constituir um espaço de forte importância para a população negra da cidade, como local de memórias, afetos e sociabilidades, os moradores do Areal da Baronesa se organizaram para solicitar o reconhecimento da região enquanto Quilombo. Em 3 de junho de 2004, o Areal recebe a Certidão de Auto-reconhecimento como Quilombo Urbano, da Fundação Cultural Palmares do Ministério da Cultura (COSTA, A. M. F., 2008, p.49). A grande circulação de pessoas pela Rua Luís Guaranha, no Quilombo do Areal da Baronesa contradiz a noção de “esfriamento” e esvaziamento da vida pública que é muito associada às avenidas. Essas largas ruas conhecidas como avenidas são associados à passagem e ao fluxo desenfreados característicos dos grandes centros urbanos, tais como a cidade de Porto Alegre. A Luís Guaranha escapa desse padrão. Apesar de nomeada avenida, é um espaço de permanências, encontros, vivências e experiências compartilhadas. É na rua que ocorrem as sociabilidades, trocas de informação, brigas e até fofocas entre os vizinhos, conhecidos e amigos do entorno (MARQUES, O. R., 2006).


 Através de antigos documentos, mas principalmente por meio da oralidade que ainda persiste e resiste vivaz e continuada entre os moradores da Luís Guaranha é possível perceber as transformações e mudanças que aconteceram na rua e na comunidade do Areal, que mais tarde obteve a emancipação enquanto quilombo urbano da cidade de Porto Alegre. Através dos relatos colhidos por Olavo R. Marques (2006) percebe-se que a área ao lado da rua já foi um matagal. As primeiras moradias que foram assentadas, todas construídas em madeira, eram essencialmente iguais e com os mesmos tipos de ornamentos também confeccionados em madeira na forma de ziguezague. Juntas elas compunham o final da avenida que, em seus primórdios, formava um “L”. Além disso, o tema da desapropriação de algumas casas consideradas “antigas” e símbolo da história daquele local, destruídas em favor do surgimento de construções “modernas” é frequente entre os relatos dos moradores. Estes se sentem ligados afetivamente ao seu espaço de moradia e convivência, percebendo as modificações e processos de desapropriação, destruição, assim como mudanças de alguns moradores, os quais procuram, por diversas razões, outros locais para viver.

O Arquivo Moysés Vellinho mantém uma relação especial com o Areal da Baronesa e seus moradores. No ano de 2019, realizamos uma visita ao Quilombo, por convite de algumas de suas moradoras mais queridas. Antes disso, no mesmo ano, estas mesmas moradoras das quais partiu o convite visitaram o Arquivo. Nos dois momentos de socialização foi interessante perceber a importância da oralidade para os habitantes do Areal. Ao mesmo tempo em que a voz e a roda de conversa eram os instrumentos naturais através dos quais se podia “contar histórias” e “relembrar o passado”, consistia igualmente em eficaz maneira de difundir a cultura religiosa do candomblé.


Visita ao Quilombo do Areal. Fonte: AHPAMV


A ligação emocional com o espaço do Areal é perceptível na fala de um de seus moradores, nas palavras do autor, um homem negro com cerca de 50 anos:


“Eu teria que dar a benção, e eu estou pedindo a benção. E não é por esses oitenta anos não. Porque eu vim para cá com a idade de qualquer uma dessas crianças que aqui estão. Eu vim pra cá com um ano e seis meses. Claro que eu não vivi toda a minha vida dentro de um ponto só, houve divagações nessa minha saída. Mas eu sempre permaneci aqui. Portanto eu sou daqui. Porto Alegre exige isso de nós, e nós temos que dar a Porto Alegre o que realmente somos… Eu não nasci aqui, mas eu me criei aqui, meu Deus! Aqui eu me criei, aqui eu abri os olhos, aqui tem milhares de pessoas que eu conheci e já não existem mais. Aqui eu sei de tudo isso que eu vivi” (2006:103).

 


Compreende-se, portanto, que os moradores do Areal da Baronesa mantêm um forte senso de pertencimento em relação ao local onde viveram e ainda vivem. Espaço este no qual trocaram experiências e solidificaram laços sociais. O autor define a relação entre a avenida e seus moradores sobre a lente de um processo de “territorialização das identidades desses habitantes urbanos, através de sua inserção em meio a redes e espaços sociais simbolicamente demarcados nas atitudes éticas e estéticas dessa população, oriunda de uma experiência coletiva” (2006:103).

Com fins de conclusão deste ensaio podemos dizer que a visita dos moradores do Areal da Baronesa não apenas foi importante para o arquivo e seus profissionais enquanto experiência diversa daquilo que a maioria estava acostumada, como também serviu como reforço aos valores que já eram bastante estimados pelos membros da instituição, os quais são o respeito à oralidade, aos saberes ancestrais, e a noção de que nenhum conhecimento é menor do que o outro. Tudo isso deve ser levado em conta quando se entra no território do outro, ao qual não se está acostumado, e do mesmo modo, quando se convida ao outro para se adentrar no seu espaço de costume. A experiência e seus resultados só podem servir a enriquecer as percepções e afetos dos dois lados que se abriram para a novidade.


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